Pela primeira vez desde 1987, o grupo dos principais clubes se uniu para organizar o Brasileiro independente da CBF. Esse foi o tamanho do passo dado pelos clubes da Série A ao assinarem a fundação da Liga nesta semana. Se bem-sucedido, o movimento representará um impacto sobre todo o ecossistema do futebol nacional, não só a sua competição principal. É bem diferente da Superliga que pretendia só privilegiar clubes ricos e deixar o restante para trás.
O documento de criação da Liga foi entregue à diretoria da CBF com a assinatura de 19 clubes da Série A — o Sport não assinou, mas apoia. Convidados, os times da Série B sinalizaram positivamente para participar, ou seja, a associação pode chegar a 40 times.
A intenção é organizar o Brasileiro em todos os seus aspectos, financeiro e logístico. E isso acarretaria em mudanças estruturais importantes na gestão da bola do país. Por quê?
Primeiro, ao organizar o Nacional, os clubes farão a temporada girar em torno desta competição como ocorre na Europa. Só será possível um ganho econômico de fato quando houver domingos disponíveis para todas as rodadas da competição que teria de ser estendida. Isso implicaria em uma reforma dos Estaduais, seja no tamanho, seja no período em que são disputados.
Dificilmente essa realidade ocorrerá na primeira temporada a ser disputada em uma eventual liga. Os clubes já decidiram debater questões que geram polêmica mais para frente para evitar divisões internas. De fato, uma cisão interna é tudo que a CBF gostaria. Mas, a longo prazo, é difícil imaginar uma liga aceitando um Brasileiro espremido em sete meses.
Segundo, a reunião dos clubes na Liga tende a mudar a forma como os direitos de transmissão serão negociados. Não é proibido ou impossível negociar direitos individualmente dentro de uma liga, ocorre em lugares como o México. Mas a Liga, com os clubes associados, induz a uma negociação coletiva dos direitos. Até porque isso também aumenta o valor a ser pago por ela por possibilitar o empacotamento de jogos que permitirá a exploração por diversas plataformas e veículos.
Por sorte dos clubes, os contratos atuais com a Globo e a Warner são válidos até 2024. Ou seja, essa discussão, que também pode gerar divisões, ficará para depois de ter uma Liga mais consolidada. Talvez em 2022 ou 2023. Mas ela fatalmente ocorrerá, assim como a divisão potencial de direitos. A forma como a Liga será comercializada pode alterar toda a visão do futebol sobre marketing.
Terceiro, ao assumir a organização do Brasileiro, os clubes vão tirar da CBF o maior instrumento de pressão que tem sobre eles: a arbitragem. Qualquer conversa com um dirigente de agremiação vai revelar que seu maior medo em confrontos com a confederação é ser prejudicado por erros de árbitros. Não há aqui nenhuma acusação a CBF de manipular os juízes, até porque não há prova neste sentido. Mas esse sentimento de pressão é real.
Ao mesmo tempo, a arbitragem ficar nas mãos dos clubes também representa um risco. Dirigentes estão acostumados no Brasil a pressionar os juízes e, se forem sócios da Liga, terão ainda maior prerrogativa de pressão sobre sua diretoria. Imaginem dois clubes brigando por questões de arbitragem em um Conselho da Liga? Será preciso, portanto, amadurecer neste sentido.
Quarto, a instituição da Liga obrigará a se repensar o restante do futebol brasileiro. Atualmente, a CBF financia em parte as Séries C e D, e o futebol feminino. É pouco para uma entidade que suga dinheiro do ecossistema do futebol e retorna quase nada: prefere manter R$ 900 milhões em caixa.
Será que a CBF vai repensar o seu papel e criar um calendário sustentável para os clubes que não estarão na elite? Além da entidade, haverá um subsídio por parte da Liga da Série A para essa cadeia? Essas são perguntas que precisam ser respondidas sob pena de quebrar o sistema enraizado do futebol nacional que permite que atinja todo o país e seja um celeiro de jogadores. Não é possível abandonar grande parte da economia do futebol.
No geral, para a Liga ser bem-sucedida, os dirigentes vão ter de mudar a forma como encaram a gestão dos seus próprios clubes. Nenhuma administração empresarial da associação das agremiações resistirá se não for calcada igualmente em práticas corporativas dentro das próprias agremiações.
Regulações como o Fair Play financeiro, que a CBF adia ano a ano, seriam saudáveis dentro deste ambiente. A aprovação no Senado da nova lei de clube-empresa entra neste cenário.
O que os clubes fizeram na terça-feira abre brecha para uma guinada no rumo do futebol brasileiro. Está nas mãos deles, e não da CBF, garantir que isso de fato se confirme.
Retirado de: UOL – Blog do Rodrigo Mattos