Biógrafo de Guardiola diz que Torrent tem mesmo espírito ofensivo de Jesus

Marcos Braz (esquerda), Domènec Torrent (centro) e Bruno Spindel (direita) (Foto: Alexandre Vidal/Flamengo)

Autor do livro “Guardiola Confidencial”, o jornalista Marti Perarnau conviveu de perto com o treinador do Manchester City e o então auxiliar Domènec Torrent, recém-chegado ao Brasil, depois de topar o desafio de assumir o Flamengo. Em entrevista ao “Lance!”, Perarnau deu detalhes sobre a personalidade do catalão e destrinchou as preferências táticas e metodologias de trabalho de um profissional, que na visão do escritor, está preparado para suportar a pressão de dirigir um gigante brasileiro.

“Não sei se alguém pode se preparar para isso. É difícil explicar o que é o Flamengo e a paixão pelo futebol que existe no Brasil. Dome é uma pessoa muito tranquila, não tem duas caras, muito transparente e que não vai se calar se considerar que algo está errado, mas tudo vai depender dos resultados. É um desafio grande porque não se pode melhorar o que fez Jorge Jesus. Ele chega ao Flamengo para somar e melhorar algumas coisas. Se ele conseguir os resultados, a pressão será menor, mas ela sempre existirá. Ele está acostumado, é uma pessoa humilde, sem vaidades. É um homem do futebol dirigindo uma equipe que é top mundial e está pronto para isso”, disse Perarnau.

Assim como disse o próprio Torrent na apresentação oficial ao Rubro-Negro, o biógrafo vê semelhanças no estilo do espanhol com o do antecessor Jorge Jesus. Para ele haverá uma continuidade no trabalho voltado para um futebol ofensivo e bonito de se ver, com pequenas mudanças.

“O espírito ofensivo do Jesus é o mesmo do Dome e de Pep de sempre buscar a vitória e pressionar no campo adversário. O Dome tem o mesmo conceito. Ele gosta de ser forte na defesa, mas é adepto de um jogo aberto e ofensivo. Acho que alguns jogadores do Flamengo são perfeitos para esse tipo de jogo. Os resultados podem ser positivos e negativos. Jorge Jesus poderia ter perdido a Libertadores por um minuto e no futebol sabemos que aparecem heróis em pequenos detalhes. O estilo é o mesmo do Dome, o que muda são alguns detalhes”, explicou o jornalista.

Confira outras respostas de Marti Perarnau ao portal “Lance”:

Estilo e personalidade de Dome:

Dome é um treinador de personalidade forte, que sempre fala diretamente com os jogadores, dirigentes e jornalistas. Ele tem uma única maneira de dizer as coisas. Quando ele opina algo, não utiliza meias-palavras ou palavras diplomáticas. Ele é sempre muito claro e transparente. Do ponto de vista técnico, é um treinador que gosta de se adaptar à realidade da equipe que tem nas mãos.

Metodologia:

Ele tem uma metodologia de trabalho construída no Barcelona há muitos anos, primeiro com Johan Cruyff, depois com Van Gaal e, finalmente, com Guardiola, chamada microciclos estruturados. Microciclos porque são feitos pequenos ciclos de três dias, nos intervalos entre os jogos e estruturados porque têm uma estrutura de modulação depois dos jogos em que é feita a recuperação e a preparação para a partida seguinte. Não existe um trabalho separado em duas partes com uma pré-temporada muito dura em que a forma física é adquirida aos poucos, mas sim um conceito de só se preparar para o próximo jogo, estar na melhor forma possível para o jogo seguinte. Pode ser que haja um jogador que precise de sete ou mais dias de um trabalho específico e aí ele não vai jogar. Mas no geral, a ideia é preparar o elenco para o jogo seguinte. A equipe trabalha exercícios em que é a protagonista do jogo, com a posse de bola e sempre atacando. O espírito é ser ofensivo.

Esquemas táticos preferidos:

Como base ele usa o 4-3-3 porque é o esquema que mais se adapta ao posicionamento de jogo dele. É o esquema que permite jogar com dois extremos e um centroavante, um meia e dois volantes. Permite as triangulações nas laterais. A partir daí, o 3-4-3 também poderia ser utilizado, segundo o momento da temporada e os adversários, mas normalmente ele prefere o 4-3-3. No City, ele provou o 3-5-2. No Manchester ele pressionou para manter o 4-3-3 e não mudá-lo. Os jogadores do City estavam cômodos com o 4-3-3. O 4-3-3 dele se desdobra em 2-3-2-3 quando tem a bola: dois zagueiros, uma linha de três com um volante e os dois laterais, que fecham muito por dentro para evitar os contra-ataques, dois meias para organizar o ataque e dois pontas e um atacante centralizado. O 4-4-2 ele tem praticado, mas não é um 4-4-2 à moda inglesa. É mais um 4-2-2-2. Por exemplo, se não tem os pontas porque estão lesionados e usa um dos laterais para subir, constrói uma defesa com quatro homens, ainda que um deles suba mais. Isso acontece mais por uma série de circunstâncias como essa falta de pontas ou um adversário que facilite jogar dessa maneira. O Dome gosta que o jogador se sinta confortável e que não fique desorientado. Acredito que ele começará com o 4-3-3.

Posicionamento em campo:

Vejo que no Brasil, em alguns lugares, se deu uma certa confusão sobre isso. Não se trata de um jogo em que o jogador ocupe sempre a mesma posição, mas sim que sempre haja um jogador nessa posição, ainda que não seja o mesmo jogador. Há um intercâmbio de jogadores nas posições determinadas. Na primeira sessão de treinos é feita a recuperação, na segunda, um trabalho técnico-tático e na terceira, ações de bola parada, ofensivas e defensivas. É um trabalho de muita intensidade. Dome é um especialista na bola parada e diria que seu auxiliar, Jordi Guerrero, é ainda mais especialista.

Calendário apertado:

Ele teve esse problema nos Estados Unidos. A MLS tem esse calendário em que se joga a cinco mil quilômetros de distância no dia seguinte e depois o time pode ficar 15 dias sem jogar. Por isso, acho que é importante que os primeiros dias de treinamentos sejam dedicados aos principais conceitos de jogo. Isso o Dome tem muito claro. Apenas se você faz uma pré-temporada pode aprender e ir praticando depois. Quando se joga a cada três dias, não há tempo. Por isso, é importante que os conceitos sejam entendidos logo no início. As primeiras semanas são chave. Será um desafio para Dome, mas certamente ele já sabe do pouco tempo que terá ao chegar ao Flamengo. Em Nova York, chegou em uma terça-feira e na quarta já teve seu primeiro jogo. Teve apenas um treino para explicar tudo.

Fases do aprendizado dos conceitos:

Se não me engano, há jogadores no Flamengo que ele já conhece bastante como Rafinha e Filipe Luís. Não vejo motivos para a adaptação ser muito difícil. É importante que os jornalistas brasileiros saibam que o modelo de jogo tem diferentes fases de aprendizado. Acho que os primeiros conceitos são bem simples dos jogadores aprenderem e executarem dentro de campo. Depois vem uma fase mais complicada onde é muito difícil que o jogador progrida e melhore aquilo que já está fazendo. Essa segunda fase dura alguns meses e a equipe não joga melhor do que vinha jogando na primeira fase. Depois vem uma terceira fase onde há um salto de qualidade na maneira de jogar. São essas três fases, mas, claro, não é algo matemático.

Características de jogo:

Acho que ele vai fazer essa tentativa de juntar os conceitos de posicionamento, que são muito simples, com ideias concretas para conseguir alcançá-los. Ele vai se adaptar para conseguir ser protagonista, ter a posse de bola e jogar no ataque. Ele vai tentar aplicar tudo isso aos jogadores que tem. Ele tem obsessão pela análise de desempenho das equipes. Em geral, ele assiste muito futebol de todos os países e categorias. Certamente viu muitos jogos do Flamengo com Jorge Jesus. Ele vai chegar no Brasil sabendo por completo os defeitos e virtudes dos jogadores e como é a bola parada do Flamengo.

Por que não foi para um clube da Europa após ser auxiliar de Guardiola?

Ele tem alma de treinador. Foi técnico antes de trabalhar com Guardiola e se sente treinador. Ele renunciou a isso para poder trabalhar com Guardiola, que é algo extraordinário. No segundo ano em Manchester, começou a receber algumas propostas, entre elas de clubes espanhóis. Ele foi treinador do Girona, cidade em que nasceu, por muitos anos, mas ele não queria voltar ao banco como treinador do seu ex-clube, queria buscar um desafio diferente. Também teve propostas de Arábia Saudita e da China, mas não interessava a ele esses mercados. Depois surgiu a oportunidade no New York . Ele saiu de lá depois de vencer a Conferência Leste porque a estrutura da MLS é muito complicada. São condições que não permitem desenvolver um grande projeto. Então ficou à espera de uma equipe compatível com o que ele aspirava e o Flamengo é um dos grandes do mundo.

Rechaço pelo rótulo de futebol “Tik-Taka”:

O Tik-Taka é uma etiqueta de marketing muito potente e muito acertada. Dá a impressão que é simplesmente tocar a bola, sem nenhum outro objetivo. Por isso, o Guardiola odeia tanto essa expressão e o Dome também. Os dois viveram situações ruins no início em Munique porque os próprios jogadores do Bayern acreditavam que o estilo deles era esse. O jogo deles não é tocar a bola, mas sim utilizá-la para marcar gols. Às vezes é preciso tocar a bola por muito tempo para desorganizar o adversário e aproveitar os espaços para marcar gols, mas outras vezes será correr em um contra-ataque para fazer gols também.

Relação com jogadores brasileiros:

Ele gosta muito dos atacantes brasileiros, como o Douglas Costa no Bayern de Munique. Era um jogador de uma fineza técnica e muito forte para correr, disputar contra a defesa adversária. Eles gostam muito desse jogador técnico, que é uma característica histórica do jogador brasileiro, desde sempre e que, ao mesmo tempo, é um jogador forte, rápido e capaz de enfrentar os europeus que sempre tiveram uma tipologia de muita força, como alemães e ingleses. Essa é a primeira característica que eles gostam. A segunda é a alegria que o jogador brasileiro dá a uma equipe. Já trabalharam com vários nomes assim como Ederson, Rafinha, Fernandinho, Fernando, Douglas Costa, Gabriel Jesus e outros, que certamente não lembro agora. Eles gostam muito dos jogadores brasileiros, que são de um escola de entrega à equipe, que visam o benefício coletivo. Por tudo isso eles têm essa paixão pelos jogadores brasileiros.

Guardiola na Seleção Brasileira?

Eu não sei responder porque o Pep mesmo não sabe. Quando escrevi os livros em Munique, a ideia dele era ficar três anos na Alemanha, três anos em Manchester e depois dirigir alguma seleção. Acho que no íntimo dele há seleções que considera mágicas, como Brasil, Holanda, Inglaterra e Alemanha ainda que cada um desses países viva momentos diferentes no futebol. Depois de Munique, chegou a Manchester e teve uma primeira temporada muito difícil e a segunda e terceira temporadas de muito êxito. Agora teve uma quarta temporada muito difícil contra um Liverpool extraordinário. Ele segue por lá, já não foram três anos, foram quatro e agora serão cinco. Eu não descarto que sejam mais anos. Já não sei se depois do Manchester City ele vai dirigir uma seleção. Acredito que ele não queira projetar um futuro muito distante. Vai tentar vencer essa Champions, na próxima temporada superar o Liverpool e não está pensando mais adiante. Ele sempre falou da Holanda por Johan Cruyff e do Brasil por ser o berço de Pelé, Rivellino e tantos jogadores fantásticos. Ele tem um encantamento muito grande pelo futebol do Brasil. Daí a ele dirigir a Seleção é outro assunto. Também não sei se o Brasil está preparado para ter um treinador não brasileiro.

Contribuições ao futebol mundial:

A aparição de Guardiola, com Dome ao seu lado, em 2008, coincidiu no tempo com uma grande mudança no futebol mundial. Dos anos 1970 até 2008, 2009, o futebol viveu uma etapa muito cinzenta, com poucas inovações, exceto as provocadas pelo próprio regulamento. Com Guardiola e outros treinadores, como Mourinho, Klopp e alguns outros, houve um renascimento de ideias no futebol. As ideias defensivas surgiram do Mourinho, por exemplo e deixou seguidores, como o Leicester que venceu a Premier League. Guardiola fez renascer um estilo de jogo relacionado à Hungria de Puskas, ao Brasil de Pelé e Tostão, à Holanda de Cruyff. Klopp fez uma combinação dessas ideias e conseguiu agora montar um grande Liverpool. Foram muitas inovações em cerca dez anos, depois de 30 anos de estagnação. Dome viveu todo esse processo em primeira pessoa. Isso tem sempre um lado negativo que é quando ataco 80% do tempo e tenho a bola no campo adversário, quando há um pequeno erro, posso tomar um gol e às vezes se perde um jogo ou um título por esse tipo de coisa. É um preço que é preciso pagar por jogar dessa maneira. O times que jogam sempre fechados, às vezes, também pagam o preço de só defender. Quando Pep e Dome chegaram na Bundesliga viveram esse grande choque ao se depararem com o ótimo contra-ataque alemão. Lá construíram essa ideia de colocar os laterais por dentro para criar um muro antes dos zagueiros e levaram isso à Inglaterra. Foi também o que Dome levou à Nova York. Acho que ainda que Dome conheça muito a grandeza do Flamengo, e tenha estudado muito os jogadores, pode se deparar com uma outra realidade que o obrigue a tomar decisões e a se adaptar rapidamente. Será um novo avanço. No futebol, há sempre ação e reação. Alguém propõe alguma coisa e outra pessoa contrapropõe, gerando o progresso.

Retirado de: Lance